Arquivo | setembro, 2010

Il Ballo Del Mattone

29 set

O nome do lugar é uma homenagem a uma canção de Rita Pavone, Il Del Ballo Mattone (Gorriti 5934), mas a gente se acostumou a chamar-lo de “O bar do Charles”.  Descobrimos uma noite que o moço animado que servia as mesas, Charles, que é a lata do pintor Basquiat, não só era brasileiro como também baiano e uma simpatia. Meus amigos caíram de amores pelo lugar. E, para mim, posso apontar o exato instante em que isso me sucedeu. Foi quando eu entrava nesta sala cheia de pinturas caóticas e street art e a cantora começou a entoar Night and Day do Cole Porter. É isso para mim: um lugar cheio de grafite, boa gente, vinho e comida e Cole Porter! Já tá bom para mim, me deixem aqui, avisem os meus que não volto para casa, que não vou ao mestrado, que não regresso ao meu país. Vou ficar encantada na Argentina, tomando vinho, olhando para o grafite, escutando Cole Porter!

Forno de Pizza: Para fumar um cigarrinho e esquentar o bumbum

Descobrimos “O Bar do Charles” graças ao beau de uma amiga que toca lá nas quartas-feiras. Com o o tempo, fui entendendo sua dinâmica. Na porta quase ao lado funciona um restaurante bem razoável  ( confesso que é a menor cozinha funcional que já vi). O Jazz mesmo acontece nesse cômodo de teto alto, pintado dos pés a cabeça, cujos fundos aprendi a gostar nas noites de inverno quando saía para fumar e esquentar o bumbum no forno de pizza. Na última quarta-feira do mês rola uma festenha. É um ambiente descontraído de pintura e música que começa e termina cedo ( 21h äs 01h30, isso é cedo para los hermanos). Preços razoáveis, comidinha mais razoável ainda. E jazz, jazz na veia. Sextas e Sábados o lugar ganha o auxilio luxuoso de um DJ. É assim como o jantar vira um jantar dançante dependendo da animação dos comensais.

Ballo People

Freqüentando descobri também que existe uma galerinha bem típica do Ballo. E fuçando descobri, vejam só: Il Ballo Tv, com direito a programa de rádio ( na Rádio Palermo, mãe de todos os projetos alternativos e comunitários em Buenos, sexta s de 17hs a 19hs, FM 94.7) e videozinhos descolados. Vale a pena conferir AQUIIII!!!!

Tu Vuò Fa L'americano...

É mesmo um pedaço de Little Italy, mas aquela do tipo felliana, com vintage art, macarrão, música e personagens oníricos. O tipo de anormalidade que me parece normal. Li na internet um depoimento do dono que fez com que entendesse melhor o Ballo, um lugar feito para ser bagunçado, invadido, dominado. Casa dos artistas locais, o Ballo tem mesmo algo de casa do nono. “Después de sufrir una enfermedad muy grave, pensé en crear esa jornada para festejar la vida”, dice Francolini. “La enfermedad hizo que cambiara mi visión de la vida e influyó en la manera de manejar el negocio. Ahora, las decisiones pasan por el corazón y no por la economía”.

Fica minha dica de mais um lugar descolado e pulsante em Buenos Aires. Não tem como se arrepender. Tu Vuò Fa L’americano…

Isla Negra: Navegar é preciso. Viver não.

28 set

Isla Negra: vista da última morada do capitão

Nosotros no sabíamos  

que todo lo tenían ocupado,

las copas, los asientos,

las camas, los espejos,

el mar, el vino, el cielo”.

Dizem que soaram até vuvuzelas em Santiago quando descobriram que os 33 mineiros presos em uma mina mais de 700 metros da superfície se encontravam bem . Estávamos no ônibus a caminho da terceira casa que conheceria de Neruda – a última que me faltava conhecer – escutando em alto e bom som as palavras do presidente Piñera que leu o bilhete dos mineiros soterrados: “Estamos bien los 33 en el rejugio”. O motorista, passageiros  e o cobrador comemoraram efusivamente. Minutos antes havia caído na besteira de pedir ao motorista que nos avisasse quando estivéssemos se aproximando de Isla Negra. E nos sentamos nos primeiros assentos.

Isla Negra observa o mar

A viagem de Valparaíso tarda uma hora e pouquinho e, no caminho, eu vim festejando o fato de passarmos por um montão de placas anunciando que passaríamos por uma cidade chamada Casablanca. Sou fã do filme de título homônimo e uma vez indo de trem da estação do Retiro em Buenos Aires a San Isidro, passei por um bar com o mesmo letreiro do Rick’s Café, exatamente como era no filme. Desde então, todos os sábados quando vou a Victoria para minhas aulas do mestrado me penduro sem sucesso na janela do trem esperando vê-lo de novo. Por isso, vinha sorrindo por dentro cada vez que passávamos por uma placa anunciando “Casablanca”.“– Isla Negra não é uma ilha”, vinha me dizendo repetidamente o motorista quanto mais nos aproximávamos de nosso destino final. “ – Todo mundo acha que é uma ilha. Eu trago um monte de turistas acham que vão ter que tomar um barco. Não tem barco, é que Neruda inventava nomes para suas casas. Não é uma ilha”. Ele era tão simpático que não me dei ao trabalho de explicar-lhe que eu nunca achei que Isla Negra fosse efetivamente uma ilha.

Um pouco de Isla Negra: do documentário Yo soy Pablo Neruda

O ônibus nos deixou na beira da estrada onde a primeira coisa que se vê é o “Estacionamento Pablo Neruda”. É preciso então ir descendendo uns 500 metros por um caminho de areia. Vai ficando óbvio porque o poeta escolheu este lugar para viver e finalmente para ser enterrado.

Isla negra, navegar é preciso...

Por entre pinheiros aparece uma praia tão dramática como seus versos, ondas altas chocando-se a torres de pedras negras, casas acomodadas sobre os cerros, névoa e maresia. É um desses lugares feitos para grandes insights onde se pode sentar sobre uma pedra e vislumbrar uma vida inteira.

O que via o poeta...

Foi em 1939 que Neruda encontrou um terreno de 5 mil metros derretendo-se sobre o pacífico.

Poesia com vista para o mar

 Isla Negra era então uma vila de pescadores, cheirando a sal e iodo, com praia de areia e ágatas , um lugar perfeito para escrever. Da pequena casa de pedra Pablo foi tecendo a trama de uma construção complexa como suas outras moradas, construindo cômodo a cômodo, como um quebra cabeça de peças infinitas, como um tapete mágico. “En mi casa he tenido juguetes pequeños y grandes, sin los cuales no podría vivir. He edificado mi casa también como un juguete y juego en ella de la mañana a la noche.” Aqui foi colecionador em todo seu esplendor entre seus mais 3.500 objetos, trouxe a sua sala los “mascarones”de proa, estatuas de mulheres que adornavam as proas de embarcações antigas, mulheres estas que ganharam nome e vida e entraram para as anedotas da casa. E mais uma casa desenhada para ter segredos, detalhes, vistas e janelas secretas cortejando o pacífico. Medusas descansam entre arcanjos e borboletas empalhadas, punhais, veleiros engarrafados, estatuas de Rapa Nui, insetos estranhos, Rimbaud, Whitmann sob bóvedas de madeira, sempre como a quilha que corta o mar, as casas de Neruda são feitas para a navegação. “Yo soy un amateur del mar, y desde hace años colecciono conocimientos que no me sirven de mucho porque navego sobre la tierra.”

Pablo e Matilde, como os vi naquela tarde na praia

Uma última adição nos lembra da personalidade fanfarrona do poeta. Uma saleta para acomodar uma réplica em tamanho real de um cavalo, símbolo de uma loja de ferragens incendiada na cidade de sua infância, Temuco, para o qual se construiu um cômodo e se festejou sua chegada com presentes de amigos ao animal, entre eles dois rabos.

Na sala suas mulheres de proa...

Finalmente, pelo fim da visita, se chega a sua impressionante coleção de “caracolas” porque Neruda era ativo estudante de conquiliologia. Milhares de conchas de engalfinham em uma sala azul que faz com que pareçam mais celestes que do mar. Acreditava tanto nos presentes do mar que um dia se levantou e disse a Matilde, sua última esposa, que iria a praia a espera uma encomenda que lhe traria o oceano. Esperou por horas até retornar com uma tábua imensa, destroços de uma embarcação qualquer, que viria a transformar em sua mesa de trabalho, de onde saíram poemas que zarpariam para o mundo. Foi em Isla Negra que o poeta se despediu do mundo, partindo para a Clínica Santa María, em Santiago, pouco antes de falecer, dias depois do golpe militar que mudou para sempre a história do Chile. Foi vítima de um coração partido,um câncer de próstata, uma alma que não cabia mais no corpo e de um país que entrava nas trevas no dia 23 de setembro de 1973.O primeiro sepultamento no Cemitério Geral de Santiago foi acompanhado de um cortejo militar que jamais estaria presente por vontade do poeta. Neruda retornaria a casa então, para sua morada final, ao lado de sua companheira Matilde, em 1992, onde repousa feliz com vista para o mar, marinheiro em terra como sempre foi com os pés voltados para as pedras escuras de Isla Negra ao lado de Matilde á deriva…

 

Serviço:

http://fundacionneruda.org/index.html

Os ônibus de Valparaíso saem do terminal da cidade de hora em hora.  Santiago a distancia é mais ou menos a mesma.

Um PS: Ao sair demos de cara com o muro cheio de poesias das crianças locais. Era tchuchuca atrás de thuchuca. Deixo um registro da que mais gostei:

Você já foi assaltado por um vietnamita?

22 set

Voce ja foi assaltado por um vietnamita?

Você já foi assaltado for um vietnamita? Eu já. Burguesia besta é assaltada em qualquer lugar, Buenos Aires não é exceção . Para provar que ressaca de Fernet, fome, desorientação e Palermo Hollywood não se misturam, meu cartão de crédito terá que amargar mês que vem três dígitos por uma comida que não enchia barriga nem de modelo anoréxica. Foi assim que eu e mais alguns amigos, dia seguinte a festinha de inauguração de minha nova casa em Palermo resolvemos, famintos, e com o cérebro seriamente afetado pelo álcool da noite anterior, comer algo diferente ao norte da Juan B. Justo no restaurante da moda Vietnamita: o Green Bamboo (Costa Rica, 5802). B-i-g-m-i-s-t-a-k-e! Mais de 150 pesos per capita por uma comidinha metida à besta, cinco pedaços (contados!) de peixe ao molho de três amendoins, literalmente e aquele ar inexplicável de “Como assim voce não acha normal pagar 80 pesos por um prato com três pedaços indecifráveis de qualquer coisa da gastronomia moderna?”.

 

Muro de Berlim, tipo a Johnny Be Good

Explico: a Avenida Juan B Justo, carinhosamente apelidada de Johnny Be Good Avenue, é uma espécie de Muro de Berlin em Buenos Aires, separa a classe média de Palermo da classe média alta  meio besta e com ares blasé de Palermo Hollywood.  É uma avenida com poucas passagens para pedestres, instransponível em vários pontos, com trilhos e trens inóspitos, muros pixados e warehouses aparentemente abandonadas. Tudo nela parece dizer não ultrapasse. Para mim ela só serve para que taxistas lhes dêem enormes explicações sobre as voltas que tem que dar para atravessar a avenida e para manter gente desmotorizada fora do cool barrio Holiúdiano. É fácil ver se você terá ou não que cruzar a faixa de Gaza. Se o endereço de onde você quer ir é numa rua de nome de país da América Central tipo Honduras, Guatemala, Costa Rica e está acima da altura de 5 mil mais ou menos você terá que cruzar a J. B Justo. A verdade é que eu vivo por aí. Gosto dos restaurantes, das enormes árvores que abraçam ruas cheias de belíssimos prédios e casarões. E adoro sua crowd descolada dos domingos. Mas é preciso fingir ser Imelda Marcos ou a mulher de um ditador africano para existir em Palermo Holiúde!

Green Bamboo: Bonitinho porém ordinário

E este mês eu andei me comportando como a rainha da Jordânia, gastando como se tivesse um marido magnata do petróleo.

Como eu gosto de comer e beber com gente fina, elegante e sincera, mas meu orçamento não me permite muitos luxos entrei no mundo dos maravilhosos Menús do Meio dia. Portenhos curtem mesmo o jantar, sentam tarde, dez da noite e destroçam a dentadas filés de brontossauro, pedaços enormes de boi que parecem terem saído de um episódio dos Flintstones. Eu não sou evolutivamente equipada com o moedor de carne que argentinos já nasceram portando. Se janto como eles,  passo a noite sonhando com Zombies e monstros mitológicos. Meu negócio sempre foi sair com amigos e comer languidos almoços com direito a entrada, prato principal, sobremesa, cafezinho e livraria. E, para minha felicidade, muitos restaurantes da cidade estão querendo atrair pessoas como eu. São almocinhos agradáveis com bebida, entrada, prato principal e sobremesa inclusa pela baguatela de 20 e pouquisimos reais.

Até agora minha opção preferida é o Sudestada (Guatemala , 5602), que para comer bem pela noite com vinho você não desembolsará menos de 150 pesos, ou 75 reais. Mas com o Menú do meio dia, 20 reais te farão super feliz com entrada, vinho, prato caprichado, sobremesa e café. Fica a dica para dias sonolentos como hoje, quando o inverno ainda não descobriu que é primavera: ache um bom restaurante, uma boa barganha, uma boa janela e um bom menu. O Guia óleo tem uma boa lista de restaurantes que oferecem  “menus ejecutivos”. Vale a pena comprar o guia, é minha bíblia. O Meu eu comprei na Cualquer Verdura, esta loja incrível, que eu adoro levar os amigos, em San Telmo.

Jorge Drexler: meu mestre espiritual

21 set

Drexler é meu Osho

Tenho uma amiga que diz: ” O Tempo passa e nao adianta, voce continua gostando desse uruguaio chato”. E Jorge Drexler eh meu Osho.  Tem gente que vai a India e, embora eu ainda nao possa descartar essa possibilidade, eu vou a Drexler.Eh para ele que eu corro quando algo me aflige a alma. Eh possivel que existam cantores melhores, menos populares, mais eloquentes, mais letrados, mas eu me acostumei a recorrer a Drexler e sua farmacia de letras quando preciso. Talvez seja puro habito, comodismo. Talvez eu nao seja tao afinada musicalmente. Eh possivel que ele flerte perigosamente com o pop, que eu ame jazz, yeah yeah rock n roll. Mas, o uruguaio foi,durante pelo menos os ultimos seis anos de minha vida, a trilha sonora dos melhores e piores momentos de minha odisseia. Sou perigosamente apegada e dependente dele em uma relacao mais ou menos inexplicavel. Ele faz parte da minha memoria auditiva como certos cheiros sao de minhas lembrancas mais olfativas. E talvez porque, em periodos muito dificeis, Drexler tenha sido meu divã. Dizem que falar cura, é um dos principios da psicoanalises, mas escutar também vem me ajudando ao largo desse tempo.   Por isso, quando posso vou a todos os shows. E foi assim que, desembolsando o dinheiro que nao tinha, fui assisti-lo no Teatro Gran Rex, no coracao da Avenida Corrientes, no domingo a noite. Eu acho que nao sou excecao. Nos primeiros shows dele conheci gente que empreendia viagens internacionais com o unico intuito de ve-lo.

DREXLER, DOMINGO, NO GRAND REX

Somos como uma sociedade secreta e viciada que aguarda anciosamente seus lancamentos entrando em listas de esperas de lojas de discos. Mas afinal o que ha em Drexler? Nada demais. E eh isso que nos atrai. Uma simplicidade quase insolita. Uma franqueza quase ludica. Uma sonoridade de roda de violao, fogueira e banquinho. Nos ultimos anos o vemos ganhando popularidade. Acompanhamos sua ascencao com cautela, prefeririamos mante-lo segredo, mas secretamente comemoramos seu sucesso. O fantasma do pop nos assombra. Um medo de que entre para as trilhas das novelas que nos aflige. Queremos trancar Drexler em uma caixinha de musica. E a contradicao reside no fato de querer dividi-lo com o mundo. O show de ontem foi uma grande viagem pela estrada da memoria. Ele é super divertido, fala para dedeu, ja fui a tantos shows que reconheço suas piadas e me divirto com suas chatices, típicas de um meticuloso virgiano.  Enquanto ele ia cantando, acompanhado de sua nova matilha de sopro, eu ia me dirigindo para dentro de minhas lembrancas tao embaladas por suas toadas uruguaias. Ia me despedindo da gente que foi, dando bemvindas aos que vieram, acomodando os que ficaram e cantando junto. Y que sea lo que sea…

VAMOS DESCULPAR O POWERPOINT E SER FELIZ COM A CANÇAO

Fica aqui minha dica musical, em um novo espirito altruista de dividir o que ja foi avareza , meu presente do outro lado do Rio Prata lembrancas de um Uruguai que ainda nao conheci, mas que fica na outra margem do rio onde vivo. Rema, rema…

Valparaiso, um museu a ceu aberto

18 set

Bastava ser a cidade singular que eh para entrar no meu hall de lugares favoritos no mundo. Mas, Valparaiso vai alem. Alem de seus cerros misteriosos, seus trabalhadores do bar, seu ar hemingwayniano, sua vocacao para o movimento, Valparaiso eh um museu ao ceu aberto. E isso eh a cereja de seu bolo chileno. Nao eh segredo para ninguem minha paixao por arte callejera, ou street arte, por isso, me apaixonei ainda mais por essa joia do pacifico. Estah por todos os lados, junto a frases soltas, poesias escritas em muros e vagoes, entre paineis belissimos e desenhos de gosto duvidoso, a cidade veste-se de spray e tinta para receber o mar. Deixo aqui um pouco do melhor de uma cidade que por si soh jah eh pra la de especial.

 

Palermo e o Banzo

16 set

Nuevo barrio, nueva vida...

Este blog nao estah abandonado, juro!Mas estamos passando por uma uruca danada . Sem internet em casa, editores de texto sem licenca ( dai a completa falta de acentos neste post), correria, visitas e uma mudanca no meio da Tormenta Santa Rosa. A nova casa eh muito bemvinda, mas veio cheia de surpresinhas desagradaveis.Do tipo era uma casa muita engracada, sabe… Estah sem internet e ha semanas tentamos conecta-la com o mundo, infiltracoes, baratas, cadeiras quebradas e um dono que mora em Cordoba estao fazendo com que eu perca algo do meu sono e fique longe do blog .

Como todos os grandes “feitos”  da humanidade, tudo comecou com uma ideia. Estava super bem vivendo no centro de Buenos Aires, minha mini mansao, um loft em um predio decadente no coracao da rua Viamonte perto das principais arterias da cidade. Mas, algum antepassado romeno deve ter me visitado nos sonhos e a alma cigana comecou a saltar dentro de mim. O problema eh que nos fins de semana me sentia no cenario do filme de Meirelles, Ensaio Sobre a Cegueira. Por ser uma zona tipicamente comercial e pouco residencial, nos sabados e domingos restavamos eu, o lixo espalhado pela rua e meu amigo mendigo, Hagar o Horrivel. Alem do mais, depois de um tempo, eh preciso escolher seu bairro na capital. Conheco gente que eh San Telmo, como cariocas sao flamenguistas. Gente que eh Almagro ate a morte. Pessoas que sao do suburbio, preferem San Isidro. Meninos e meninas que, como Gardel, sao Abasto. Tenho amigos viciados no ar decadente do velho dinheiro da Recoleta. Eu, no entanto, depois de meses subindo a Avenida Cordoba e descendo a Santa Fe, descobri que sou Palermo.

Palermo: Lar doce lar

Palermo eh um dos bairros – se nao ” o” mais, mais – mais hippiecool, mauricinho as vezes, metidinho a besta de Buenos Aires . Tanto que a especulacao imobiliaria eh tamanha  que os bairros adjacentes estao encolhendo e adentrando seu mapa e, em alguns anos, eh capaz que vivamos em Buenos Aires, Palermo. Mas eu me rendi sem culpas aos seus cafes metidos a besta, restaurantes da moda, ruelas de construcoes baixas e acessibilidade as grandes avenidas como Scalabrini Ortiz e Santa Fe. Sonhei com um predio de janelas amplas e varanda de onde eu pudesse sair todas as manhas pintada e vestida como Evita cantando ” Don’t cry for me Argentina”.

Com o aproximar da primavera e temperatura mais amenas sonhei com uma ” terraza” , uma parrilla, um lugar mais amplo para fazer festas e receber amigos. O que encontramos foi um charmoso apartamento na rua Charcas, algumas quadras da Plaza Armenia, onde gosto de ir para sonhar a Argentina nos finais de tarde, com criancas correndo pelos parquinhos, gente linda comprando e comendocomo uma pequena Nova Iorque sulamericana. Com um pe direiro alto, meu quarto um latifundio, um pequeno patio interno que transformei em jardim de inverno e uma pequena terraza subindo do segundo quarto no segundo andar, pensavamos ter encontrado o lugar perfeito.

A primeira festinha revelou que nossa vizinha eh nada mais nada menos que a wicked witch of the west!

Nossa primeira festinha revelou uma vizinha zenofoba que no segundo convidado estava me abordando no corredor e trincando os dentes para dizer ” que los extranjeros” vem a Buenos Aires para fazer bagunca e que aquele era um predio de familia. Depois de coloca-la em seu devido lugar, tive um misto de raiva e pena porque nao tenho a menor intencao de zelar pelos bons costumes do edificio. Se tinha um problema com os extrangeiros antes agora  irah, com nossa estadia, unir-se ao primeiro movimento neo-nazi que encontrar. Com o banzo, rocando as portas do meu coracao, as festas so acontecem acompanhadas de batuque, pandeiro e violao. Eh um tal de moro em Jassana que adentra a madrugada.

Deu Banzo!

Eu devo confessar que mesmo que sinta a falta constante de certas coisas, lugares e pessoas brasileiras, nao havia sentido o banzo que ando sentindo nos ultimos dias. Tudo comecou com a vontade de comer galeto, carne de sol, bobo de camarao e coxinha, isso virou banzo do por do sol, do ceu, das ruas, das novelas, da informalidade, da musica e da familia. Amigos voltaram de suas visitas ao Brasil falando do Arpoador, de Brasilia, dos novos programas de TV do Falabela, mas me nocautearam mesmo com as empadinhas. Falar de empadinha eh golpe baixo.

Estamos constantemente organizando almocos brasileiros, tocando violao e planejando idas ao Bairro Chines para comprar tapioca. Como dizem em ingles, estou ” helpless”. Mas ontem mesmo descobri que ha esperanca. Descobri um pacote filho unico de mae solteira de pao de queijo congelado Sadia no supermercado Disco, arrebatei seus 17 pesos de gostosura rindo por dentro. A saudade eh um problema matematico de adicoes eternas, mas deixe chegar a primavera e as temperaturas amenas que ainda nao chegaram para ficar. Pode ser que o banzo se transforme em Brahma e churrasco numa super portenha terraza de Palermo. Nao sou eu quem me navega, quem me navega eh o mar…

O QUE FAZER EM PALERMO?

Comer, beber e andar. Meu lugares preferidos sao a Plaza Armenia, Plaza Serrano aos sabados, Bosques de Palermo, Planetario, Plaza Italia, Mercado de Pulgas, Jardin Botanico e as livrarias Boutique del Libro e Eterna Cadencia. Para comer as opcoes sao multiplas. O negocio eh bater pernas. Mas para cima desca no metro Ministro Carranza e caminhe por Palermo Hollywood. Palermo eh tudo de bom. E eu sei que estou esquecendo de pelo menos a metade.

Como se fosse a primavera…

8 set

Por do sol da tarde de ontem nos Bosques de Palermo

 

Aguentamos tudo. Meses de frio intenso, olas polares, sudestadas, chuvas, frentes frias vindas da Antártida e por fim, como testemunho de nossa perseverança, veio a tradicional tormenta Santa Rosa. Uma habitual chuva com fortes rajadas de vento que vem todos os anos como o último banho da cidade para aprumar-se para a primavera. Esta durou quase quatro dias de chuva fina e ventos nervosos nos deixando impacientes e cinzas. Mas, ao que tudo indica, valeu a pena. Há dois dias as pessoas saem às ruas desfilam modelitos semi- verão, um pouco incrédulas, um pouco lascivas. Parece aqueles contos de fadas nos quais uma bruxa adormece todo o reino durante cem anos. Pois, há dois dias o Reino de Buenos Aires vem acordando de seu feitiço de frio e sono e rendendo-se a uma pré-primavera agradável. Na sombra faz frio é verdade, mas no sol é possível arriscar uma manguinha. Eu tenho dois passeios super recomendáveis para dias de sol e brisa. O primeiro de todos: Bosques de Palermo. Desça para a Av Libertador e pergunte pelo Rosedal ou mesmo o Planetário. E, por favor, leve sua canga e fique para o por do sol no Laguinho. Una-se aos casais apaixonados, bebes fofos dando seus primeiros passos, grupinhos dividindo um baseado, família preguiçosas e aproveite um dos melhores crepúsculos da cidade. Na animação, alugue um pedalinho.

Mercado de Pulgas: uma curtiçao

Outro super passeio é entrar em outro mundo, outra é o Mercado de Pulgas de Palermo Hollywood ( Dorrego y Niceto Vega). O lance lá é perder-se nos moveis da vovó, encontrar raridades como quadros antigos de Maria Antonieta, televisores ao estilo dos Jetsons, móveis da década de cinqüenta, trinta, do século passado e dar um super pulinho no estande do Tony Valiente, um doido com umas obras de gosto duvidoso que bem poderiam estar na cenografia do Filme Mad Max. É uma ótima pedida e uma porta de entrada para explorar um pouquinho de Palermo Hollywood e Colegiales. Com ruas largas, cobertas de árvores enormes, esta região é uma graça. Perfeita para um café de fim de tarde depois de uma bela caminhada pelo Mercado. Com o sol e o calor voltando aos poucos, como uma flor, Buenos Aires também vai paulatinamente se abrindo. A cidade floresce junto com seus jardins. Agora, é torcer para que não hajam recaídas polares.

Deixo Pablo Milanés e Chico, porque a primavera e essa música não saem da minha cabeça.

 

Valparaíso: Las Casas Del Capitán – La Sebastiana

4 set

“Siento el cansancio de Santiago. Quiero hallar en Valparaíso una casita para vivir y escribir tranquilo. Tiene que poseer algunas condiciones. No puede estar ni muy arriba ni muy abajo. Debe ser solitaria, pero no en exceso. Vecinos, ojala invisibles. No deben verse ni escucharse. Original, pero no incómoda. Muy alada, pero firme. Ni muy grande ni muy chica. Lejos de todo pero cerca de la movilización. Independiente, pero con comercio cerca. Además tiene que ser muy barata. ¿Crees que podré encontrar una casa así en Valparaíso?”

Valparaiso: Sensaciones Unicas

Valparaiso é uma cidade obcecada com o transporte . Não é apenas seu porto, boca aberta para o pacifico, que quer contribuir para o fluxo interminável de coisas e pessoas. Existem milhões de maneiras de transitar por Valparaíso, uma cidade portuária acomodada como uma meia lua sobre as encostas que dão ao mar a 100km de Santiago. Pode-se tomar o trolley, o ônibus, taxis individuais e compartidos, elevadores antigos que sobem os cerros, bicicletas, motos, barcos, etc. Em Valparaíso as pessoas movem-se horizontalmente, verticalmente, para todos os lados e em todas direções.

 Uma cidade tão singular que fascinou o cineasta Chris Marker, figura intrigante do cinema Frances que não concede entrevistas, não se deixa fotografar consentindo sempre um gato no lugar de sua imagem.

Chris Marker também ficou fascinado

E os gatos estão por todos os lados em Valparaíso. Chilenos têm uma curiosa relação com os animais. Cachorros e gatos estão por todos os lados. Sejam preguiçosas matilhas passeando pelas ruas de Santiago, sejam gatos que como velhas carpideiras te espiam por altíssimas janelas. No Chile, os animais são transeuntes que se aderem ao dia a dia da cidade sem serem incomodados. Talvez isso tenha fascinado Chris Marker. Talvez o singularismo da cidade portuária com seus trabalhadores do mar, suas ruas abarrotadas de barracas exibindo entranhas de peixes, seus marujos saltando das esquinas, ruas coloridas, ladeiras espreguiçando-se sobre o mar, casas vitorianas ejetando-se dos cerros ou mesmo o mistério que inexoravelmente vive nas ruelas o tenha fascinado.

Valparaíso é mar e poesia

 
 

Casa de Artilleria, um lugar mágico

Nas esquinas do meu quarto em uma belíssima casa no Cerro da Artillleria o papel de parede está curiosamente amassado deixando  bolsas de ar entre ele e a parede . Eu fiquei intrigada pelo o que parece um trabalho porco de papel de parede em um ambiente tão prolixo cujos detalhes parecem tão bem pensados. Demorei alguns dias até me dar conta que por causa do terremoto de fevereiro as esquinas da casa se despregaram. E o turismo anda devagar, me explica Alejandro, o uruguaio que junto a sua esposa chilena, Trini, levam sem nenhuma ajuda este ‘hermoso” bed and breakfast no qual dos hospedamos. A Casa de Artilleria é um dos highlights da nossa viagem. A primeira compra da casa data 1906, mas ninguém sabe ao certo quando foi construída. Um casarão que se debruça sobre o Cerro Artillaria e vê passar de minutos e minutos o ascensor que leva e traz chilenos e turistas para o alto do cerro, de onde se pode ver uma pequena pintura cubista mordiscando o pacifico: milhares de containers coloridos a espera de embarque no porto servem de casa para gaivotas interesseiras.

É possível ver leoes marinhos aposentados...

Foi esta vista que fez com que nossa ida a Santiago para uns dias extras na capital fosse adiada e finalmente deletada de nosso roteiro.

E foi meu avistamento de leões marinhos no porto depois de uma volta pela Playa Ancha que lavrou meu amor pela cidade.  Um adendo: chorei como criança ao ver primeiro um velho leão marinho brincar com metade de um peixe na boca em uma cena que, não fosse meu romantismo patológico, seria desagradável. Os leões marinhos hoje não são nem a sombra da colônia que foram. Hoje, os “lobos marinos” avistados no porto são animais aposentados, expulsos da manada por não poder acompanhar o grupo ou com algum problema ou anomalia que os distancia de seus parentes saudáveis. Não importa. Mesmo os “outcasts” e rejeitadinhos dessa espécie são um espetáculo.

 
 

Minha sombra, flores e o ascensor de Artilleria, é tudo tao poético...

Não fossem os enlaces práticos da vida adulta jamais desceríamos dos Cerros. De cima, Valparaíso é uma cidade misteriosa, sinuosa, com ares de perigo e bucolismo, uma contradição que perfaz um caminho cheio de mansões assombradas ou não que sobe a Avenida Gran Bretanha até encontrar as modernas instalações da Universidade e culminar numa dramática praia de pedras negras. E os ascensores são um capitulo a parte. Não me cansava de subir e descer nessas caixinhas de madeira que pareciam tombar sobre os trilhos e faziam estranhos ruídos assustando os turistas.

Valparaíso é nostalgia

É realmente fascinante o fato de que ainda estão em circulação, principalmente depois de saber que, segundo Alejandro, a manutenção é raramente feita e que ele mesmo nunca viu um engenheiro inspecionar estes elevadores que chegam a datar 1880 como ano de nascimento.  

Valparaíso de cerros coloridos

Mas, devo admitir, foi no nível do mar que conhecemos as melhores opções para comer e beber na cidade. Uma visita a cidade não estaria completa

"Eu sei que nao é o que o médico recomendou", mas comer Chorrillana no JJ Cruz é um must!

 sem a melhor chorrillana da cidade. Explico: para mim chilenos estão fascinados com comida de barzinho. É a única explicação. Se não como entender as enorme porções de batatas fritas cujo topo é uma outra montanha de filé a palito cuidadosamente cobertas por uma outra camada de cebola e ovo ( isso quando lingüiça não é adicionada a equação) . Eu sei que não o que o doutor recomendou. Mas, é o que é. E nenhuma visita esta completa sem uma passadinha no beco do J.J Cruz para comer a única iguaria do lugar: vejam só: Chorillanas. E o lugar é uma curiosa caverna cujas bovedas estão cobertas de fotos 3×4 e escritos, fica num bequinho sem saída e absolutamente todo mundo na cidade sabe onde é.

 
 

La Playa: cinematográfico e fantasmagórico

“-Play it san, play as times goes by”. Bem que poderia ser acontecer não em Casablanca , mas no barzinho La Playa. Encontramos este lugar fugindo da chuva. Os ares eram um pouco portenhos e me deu algo de banzo. Meia luz, tango, bonecas assustadoras e um barman com cara de old Hollywood fazem desse lugar um must em Valparaíso. Construído como um barco com direito a convés e bóias, o bar La Playa tem suas paredes cobertas com posters de velhos filmes como The Shinning e um ar meio fantasmagórico e cinematográfico, o que se provou verdadeiro quando nos deram um postal do lugar no qual figura inadvertidamente o rosto do fantasma de uma menina entre as garrafas do bar. O barman nos jura que não é montagem, discutimos a tarde toda sobre isso. Meu veredito é cético. Mas, existe mesmo algo de outro mundo em este lugar. Lamparinas art noveau, cinzeiros de ferro, espelhos manchados de maresia dão ao La Playa um ar Hitchcockiano. Passamos a tarde aí esperando a entrada de Normam Bates.

La Sebastiana, Neruda também se apaixonou por Valparaíso

Neruda não ficou imune ao estranho fascínio que exerce Valparaíso. E em 1961, encontrou uma nova morada no Cerro Florida que batizou de La Sebastiana, em homenagem a seu arquiteto espanhol Sebastián Collado. É talvez a menos dramática das casas do poeta. Não tem o peso emocional de La Chascona, nem a dramaticidade e contraste de Isla Negra, mas é linda com suas janelas espiando o pacifico de cima de um dos mais lindos cerros da cidade. Uma casa feita para entreter convidados, com um humor plausível, La Sebastiana é mais uma testemunha de concreto da imensa personalidade de Neruda. Sua paixão pelos objetos, pelo mar e pela vida. Piratas, pratos, estátuas, murais mais uma vez dão testemunho de Neruda; o arquiteto, o colecionador, o homem apaixonado pelas coisas desse mundo. Não podemos banalizar-la, foi em La Sebastiana escreveu suas mais importantes obras, aquelas que o levariam ao Premio Nobel. “Yo construí la casa. La hice primero de aire. Luego subí en el aire la bandera y la dejé colgada del firmamento, de la estrella, de la claridad y la oscuridad.” Pablo Neruda – fragmento “A La Sebastiana”.

La casa crece y habla,se sostiene en sus pies,

tiene ropa colgada en un andamio,

y como por el mar la primavera

nadando como náyade marina

besa la arena de Valparaíso,

ya no pensemos más: ésta es la casa:

ya todo lo que falta será azul,

lo que ya necesita es florecer.

Y eso es trabajo de la primavera.

 

Serviço:

O blog se chama conexão Buenos Aires, mas essa é uma das melhores dicas que eu vou dar aqui e fica a milhares de kms da Capital Argentina. Casa de Artillería é esse bed and breakfast que mudou nossa estadia em Valparaíso. O quarto, a casa, a localização, a simpatia de Trini e Ale, a vista do porto, os lençóis da cama, tudo vem de um lugar de amor. O preço é mais que justo, cerca de US$ 70 por quarto de casal com vista para o mar. Conforto sem luxo, mas uma vista e uns ares inesquecíveis. Eu penso em voltar porque nada te faz querer deixar este lugar. Embora, se qualifique como albergue não tem nada a ver com o clima de farra e pouco conforto dos Hosteles. É um lugar silencioso, tranqüilo, romântico daqueles que servem de ponto de partida para languidas caminhadas e largos períodos de contemplação da vista.

http://www.artilleria199.cl/

Artilleria 199, Cerro Artilleria, Valparaíso.

Las Casas del Capitán: La Chascona

1 set

 

Capitão Neruda e seus barcos

Eu não fui apenas ao Chile, um lugar que sempre ocupou um latifúndio em meu imaginário, mas também a Neruda . De adolescente havia lido um montão de Neruda, todos os livros de Isabel Allende e muitas histórias sobre o país e, há anos, esperava uma oportunidade de ir ao Chile. Um vôo barato e uma pequena pausa no mestrado me proporcionaram adentrar esta tripa territorial espreguiçando-se sobre o pacifico cuja história sempre me fascinou um pouco. Dos horríveis contos da ditadura de Pinochet, ao realismo fantástico de seus autores, terremotos, ás canções de exílio, amor e desespero de Neruda, o Chile era um buraco em meu mapa pessoal que há muito tentava preencher. Esperava encontrar Neruda, mas não vê-lo em todas as esquinas. Esperava ir à casa do poeta, como iria à casa de Frida Kahlo se estivesse no México, mas não que viesse até mim com a força com que veio.

 

E Santiago é muito mais do que esperava.  Dizem que às vezes a poluição é tão intensa que não se pode ver os Andes. Mas, em outros dias, estão lá, abres uma janela e sentinelas de pedra e neve de olham de volta acocoradas em seus milhares de metros,  lembrando-nos que nem toda terra é dos homens. Meu guia de América do sul diz que Santiago tem seu charme “talvez não seja como Buenos Aires”, mas tem sua graça. Criamos uma teoria. Há anos escuto dizer que “não há nada em Santiago”. Teorizamos que esta é uma bela tática para manter esta capital em segredo, longe da atividade turista depredatória, aquela que transforma lugares em parques temáticos. Santiago é linda. Tem um por do sol em tons rosáceos, a presença eterna das montanhas, a ameaça constante de terremotos, a presença caudalosa do rio Mapocho, arranhásseis, uma melancolia nostálgica e vilas ( Cités, como chamam por lá). Street arte como gosto, ruas limpas, bairros sonolentos e um cheiro permanente á torradas e geléia.  

Sobrevoar os Andes...

Vindo de Mendoza é um vôo de apenas 45 minutos, sendo quase vinte deles passados sobrevoando os Andes em um espetáculo que com meu pobre

The Clinic: Hay que leerlo

 jornalismo não seria capaz de descrever. Montanhas furando a barriga de nuvens gordas, gretas cobertas de nevoa e neve, cumes de pedra negra estendendo-se sobre a atmosfera. Uma das dez coisas para fazer antes de morrer. Aliás, top passeios para fazer em Santiago: ler o jornal The Clinic. Criado há dez anos, para ridicularizar o então convalescente general Pinochet, é um jornal que passa ao largo de ser sério. Sua edição imprensa lembra antigos tablóides e suas paginas estão cheias de ironia e matérias ridicularizando tudo, das instituições serias as não tão sérias assim.  Ir a um Café com Pernas. Verdadeiras instituições em Santiago, os Cafés com pernas são produtos chilenos que deveriam ser exportados.

Café com um horário familiar de 10hrs as 20hrs, com mulheres servindo o melhor café de barítonos em biquínis e oferecendo serviços que digamos, não são tão apegados aos valores de família assim. Existem várias gradações. Os mais sérios não são mais que cafés com pernas, mulheres de biquíni e café. Os mais arrojados oferecem serviços VIPS, massagens com finais surpreendentes e outras iguarias mais velhas que a bíblia. Depois, render-se a comer centollas no mercado Central, caranguejos monstros que podem custar até duzentos dólares no Mercado Central. Observar os Murais de grafite espalhados pela cidade, tomar a estranha bebida dos chilenos, Mote com Huesillos ( quem iria pensar em combinar pêssegos, suco e trigo em um copinho?), sentar-se a praça de Armas e observar as figuras e passear no bucólico bairro de Providencia estão entres meus programas preferidos na cidade.  E, se você é como eu e Tom Waits que tem “a bad liver and a broken heart”, tomar muito pisco, sem medo de ser feliz.

La Chascona: uma casa para vivir y amar

Ejetando-se de um cerro em Bellavista, um boêmio e aristocrático bairro do capital Santiago, depois de uma das orelhas do rio Mapocho, está La Chascona , uma mutação de alcova para dois amantes que primeiro encontravam-se em silencio e discrição antes de ganhar fama como um dos casais mais importantes chilenos. Foi em segredo que Neruda e Matilde continuaram ali um romance que teve seu ápice em Capri, na Itália, antes que ele deixasse a artista argentina Delia Del Carril, sua segunda mulher, vinte anos mais velha.  E Neruda, cujo oficio principal era amar mulheres e construir casas para amar-las e adorar-las, não podia ver seu derradeiro amor sem um templo de louvação apropriado. Assim, começa a construir “La Chascona”, uma de suas três casas- barcos porque, além de marinheiro em terra firme, era um grande construtor.

Neruda e Matilde

Chascona, palavra que significa despenteada por aquelas bandas, uma homenagem as abundantes madeixas de Matilde, é um quebra cabeça de madeira e concreto abraçando o Cerro que observa a capital, uma cidade que reside dentro de uma coroa de montanhas, graciosamente lambendo os pés da cordilheira dos Andes.  Eu, que apesar de ter algum espírito nômade de marinheira , cheguei lá numa sonolenta e fria manhã de quarta-feira, sob o efeito de minha primeira ressaca de pisco chileno e esperei meu tour no café numa varanda deitada sobre a cidade.Pelo terreno passava um braço de água que foi extinto antes que comesse a casa. Foi nele que os militares afogaram os livros de Neruda quando vieram mostrar a extensão de sua ignorância saqueando e vandalizando a casa. Neruda nunca ficou sabendo, morreu poucas semanas após o golpe de tristeza e doença. É possível sentir a umidade dos lugares que um dia tiveram água.  

 

Brasil - Chile: Homenagem de Vinicius a Neruda...

É possível também ver a cidade, as montanhas e o cerro de San Cristóbal. Aliás, convivi nesta viagem com a palavra Cerro como nunca pensei tê-la tão presente em nosso cotidiano. Subimos e descemos cerros para ver cidades ajeitando-se sobre as montanhas e montes, almoçamos em cerros, vimos o Aconcagua em um cerro, tomamos elevadores antigos para subir-los, descemos a pé por eles conhecendo ruas e cidades. Por fim, me apaixonei por esses calos de montanha no qual sobem as vidas e constroem moradas ajeitando-se sobre a terra íngreme. Estamos, e isso é um lembrete, em uma zona andina. La Chascona está acomodada em um terreno originalmente de 350 metros quadrados e traz em si algo de incrivelmente austero e também a opulência de seu colecionador. Neruda era um espírito fanfarrão e colecionador cuja obsessão por objetos arrasta-se pela casa e por sua prosa.

“Amo las cosas loca,

Matilde por Rivera, La Chascona e seu acervo artistíco

locamente.

Me gustan las tenazas,

las tijeras,

adoro

las tazas,

las argollas,

las soperas,

sin hablar, por supuesto,

del sombrero. (…)”

Cheio de idiossincrasias Neruda amava taças coloridas. Dizia que as bebidas tinham mais sabor nelas. Seria preciso ter mais olhos para aproveitar cada detalhe, mas um breve tour e nos foge algo de seu humor decorativo, sua comovente austeridade de espaços e intrigante opulência em detalhes. Garrafas, cinzeiros e réplicas das mãos de Matilde estão por todas as partes dando conta dos gostos de seu Dono e seus amores. Está claro que o poeta não era um simples marujo, era o capitão deste navio. Tetos abalonados de madeira não são metáforas marítimas são indicações claras da bússola deste capitão. Seu coração estava no mar e suas casas eram a escotilha de onde sua alma vislumbrava terra firme apenas para voltar a lançar-se ao mar com o conforto de que o mar encontrava porto a qualquer momento.  Mas, há algo de triste também.  Passei boa parte do recorrido pensando em pessoas cujo amor pela vida é tão pungente que jamais deveriam morrer. O capitão havia ancorado.

Neruda e suas taças coloridas, tudo tem mais sabor nelas, o poeta dizia...

O mundo de Neruda tem dedais, leques, copos, garrafas, mastros, conchas (Neruda as colecionava), estátuas, astrolábios, quadros, muitos quadros. Quadros de seus amigos ilustres. Na pinacoteca de Neruda há Rivera, David Alfaro de Siqueiros, Roberto Matta, José Caballero, Nemesio Antúnez, Fernand Léger, José Pancetti, Noé León, Mario Carreño, Héctor Cerrera, Fernando Krahm, entre tantos outros. Há algo pop também de uma casa que, criada em 1953, viu chegar os anos 60 com apenas um inquilino. Matilde, viveu em La Chascona sozinha, por os doze anos que sobreviveu ao seu cônjuge, desafiando a ditadura e secretamente publicando textos póstumos. Textos como a biografia do poeta que chegou ao Chile depois de ser publicada fora e veio escondida sob a capa de Teresa Batista, cansada de guerra, de Jorge Amado. São os detalhes que comovem. Detalhes como saber que Pablo Neruda não era seu nome de Batismo. Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto só se transformou em Neruda muitos anos mais tarde, sabe-se porque, dizem que tomando o célebre nome de um poeta checo que admirava.  La Chascona é a testemunha de pedra de seu oficio e também de seu amor.